sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Os Laços de Família
Clarice Lispector
A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia.— Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.— Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência.Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. "Perdoe alguma palavra mal dita", dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar - perturbado em ser o bom genro. "Se eu rio, eles pensam que estou louca", pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. "Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um", acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha... Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos - e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.— Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que... - Catarina olhava-os e ria.— O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.— Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.— Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, "a proteger uma criança” ...— Não esqueci de nada..., recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. — Ah! ah! - exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar - por que não chegavam logo à Estação?— Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.— Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.— Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se "mãe e filha" fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada...— ...não esqueci de nada? perguntou a mãe.— Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas - porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou... Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.— Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.— Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:— Dê lembranças a titia! gritou.— Sim, sim!— Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam.— Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela - o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade - tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja - a força fluia e refluia no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora "sua", e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.— "Ela" foi?— Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia "mamãe" nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.— Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro - e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam...O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho... mas o quê? "Catarina", pensou, "Catarina, esta criança ainda é inocente!" Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. "Catarina", pensou com cólera, "a criança é inocente!" Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado."Mas e eu? e eu?" perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. "Com o seu sábado." E sua gripe. No apartamento arrumado, onde "tudo corria bem". Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro - deprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranqüilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torna-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria - sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranqüila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranqüilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vívido desde sempre.Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria - sozinha. Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos - sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar... e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.— "Depois do jantar iremos ao cinema", resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.
Suicídio na granja
Lygia Fagundes Telles
Alguns se justificam e se despedem através de cartas, telefonemas ou pequenos gestos — avisos que podem ser mascarados pedidos de socorro. Mas há outros que se vão no mais absoluto silêncio. Ele não deixou nem ao menos um bilhete?, fica perguntando a família, a amante, o amigo, o vizinho e principalmente o cachorro que interroga com um olhar ainda mais interrogativo do que o olhar humano, E ele?!Suicídio por justa causa e sem causa alguma e aí estaria o que podemos chamar de vocação, a simples vontade de atender ao chamado que vem lá das profundezas e se instala e prevalece. Pois não existe a vocação para o piano, para o futebol, para o teatro. Ai!... para a política. Com a mesma força (evitei a palavra paixão) a vocação para a morte. Quando justificada pode virar uma conformação, Tinha os seus motivos! diz o próximo bem informado. Mas e aquele suicídio que (aparentemente) não tem nenhuma explicação? A morte obscura, que segue veredas indevassáveis na sua breve ou longa trajetória.Pela primeira vez ouvi a palavra suicídio quando ainda morava naquela antiga chácara que tinha um pequeno pomar e um jardim só de roseiras. Ficava perto de um vilarejo cortado por um rio de águas pardacentas, o nome do vilarejo vai ficar no fundo desse rio. Onde também ficou o Coronel Mota, um fazendeiro velho (todos me pareciam velhos) que andava sempre de terno branco, engomado. Botinas pretas, chapéu de abas largas e aquela bengala grossa com a qual matava cobras. Fui correndo dar a notícia ao meu pai, O Coronel encheu o bolso com pedras e se pinchou com roupa e tudo no rio! Meu pai fez parar a cadeira de balanço, acendeu um charuto e ficou me olhando. Quem disse isso? Tomei o fôlego: Me contaram no recreio. Diz que ele desceu do cavalo, amarrou o cavalo na porteira e foi entrando no rio e enchendo o bolso com pedra, tinha lá um pescador que sabia nadar, nadou e não viu mais nem sinal dele.Meu pai baixou a cabeça e soltou a baforada de fumaça no ladrilho: Que loucura. No ano passado ele já tinha tentado com uma espingarda que falhou, que loucura! Era um cristão e um cristão não se suicida, ele não podia fazer isso, acrescentou com impaciência. Entregou-me o anel vermelho-dourado do charuto. Não podia fazer isso!Enfiei o anel no dedo, mas era tão largo que precisei fechar a mão para retê-lo. Mimoso veio correndo assustado. Tinha uma coisa escura na boca e espirrava, o focinho sujo de terra. Vai saindo, vai saindo!, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho, a conversa agora era séria. Mas pai, por que ele se matou, por quê?! fiquei perguntando. Meu pai olhou o charuto que tirou da boca. Soprou de leve a brasa: Muitos se matam por amor mesmo. Mas tem outros motivos, tantos motivos, uma doença sem remédio. Ou uma dívida. Ou uma tristeza sem fim, às vezes começa a tristeza lá dentro e a dor na gaiola do peito é maior ainda do que a dor na carne. Se a pessoa é delicada, não agüenta e acaba indo embora! Vai embora, ele repetiu e levantou-se de repente, a cara fechada, era o sinal: quando mudava de posição a gente já sabia que ele queria mudar de assunto. Deu uma larga passada na varanda e apoiou-se na grade de ferro como se quisesse examinar melhor a borboleta voejando em redor de uma rosa. Voltou-se rápido, olhando para os lados. E abriu os braços, o charuto preso entre os dedos: Se matam até sem motivo nenhum, um mistério, nenhum motivo! repetiu e foi saindo da varanda. Entrou na sala. Corri atrás. Quem se mata vai pro inferno, pai? Ele apagou o charuto no cinzeiro e voltou-se para me dar o pirulito que eu tinha esquecido em cima da mesa. O gesto me animou, avancei mais confiante: E bicho, bicho também se mata? Tirando o lenço do bolso ele limpou devagar as pontas dos dedos: Bicho, não, só gente.Só gente? — eu perguntei a mim mesma muitos e muitos anos depois, quando passava as férias de dezembro numa fazenda. Atrás da casa-grande tinha uma granja e nessa granja encontrei dois amigos inseparáveis, um galo branco e um ganso também branco mas com suaves pinceladas cinzentas nas asas. Uma estranha amizade, pensei ao vê-los por ali, sempre juntos. Uma estranhíssima amizade. Mas não é a minha intenção abordar agora problemas de psicologia animal, queria contar apenas o que vi. E o que vi foi isso, dois amigos tão próximos, tão apaixonados, ah! como conversavam em seus longos passeios, como se entendiam na secreta linguagem de perguntas e respostas, o diálogo. Com os intervalos de reflexão. E alguma polêmica mas com humor, não surpreendi naquela tarde o galo rindo? Pois é, o galo. Esse perguntava com maior freqüência, a interrogação acesa nos rápidos movimentos que fazia com a cabeça para baixo, e para os lados, E então? O ganso respondia com certa cautela, parecia mais calmo, mais contido quando abaixava o bico meditativo, quase repetindo os movimentos da cabeça do outro mas numa aura de maior serenidade. Juntos, defendiam-se contra os ataques, não é preciso lembrar que na granja travavam-se as mesmas pequenas guerrilhas da cidade logo adiante, a competição. A intriga. A vaidade e a luta pelo poder, que luta! Essa ânsia voraz que atiçava os grupos, acesa a vontade de ocupar um espaço maior, de excluir o concorrente, época de eleições? E os dois amigos sempre juntos. Atentos. Eu os observava enquanto trocavam pequenos gestos (gestos?) de generosidade nos seus infindáveis passeios pelo terreiro, Hum! olha aqui esta minhoca, sirva-se à vontade, vamos, é sua! — dizia o galo a recuar assim de banda, a crista encrespada quase sangrando no auge da emoção. E o ganso mais tranqüilo (um fidalgo) afastando-se todo cerimonioso, pisando nas titicas como se pisasse em flores, Sirva-se você primeiro, agora é a sua vez! E se punham tão hesitantes que algum frango insolente, arvorado a juiz, acabava se metendo no meio e numa corrida desenfreada levava no bico o manjar. Mas nem o ganso com seus olhinhos redondamente superiores nem o galo flamante — nenhum dos dois parecia dar maior atenção ao furto. Alheios aos bens terreirais, desligados das mesquinharias de uma concorrência desleal, prosseguiam o passeio no mesmo ritmo, nem vagaroso nem apressado, mas digno, ora, minhocas!Grandes amigos, hem?, comentei certa manhã com o granjeiro que concordou tirando o chapéu e rindo, Eles comem aqui na minha mão!Foi quando achei que ambos mereciam um nome assim de acordo com suas nobres figuras, e ao ganso, com aquele andar de pensador, as brancas mãos de penas cruzadas nas costas, dei o nome de Platão. Ao galo, mais questionador e mais exaltado como todo discípulo, eu dei o nome de Aristóteles.Até que um dia (também entre os bichos, um dia) houve o grande jantar na fazenda e do qual não participei. Ainda bem. Quando voltei vi apenas o galo Aristóteles a vagar sozinho e completamente desarvorado, os olhinhos suplicantes na interrogação, o bico entreaberto na ansiedade da busca, Onde, onde?!... Aproximei-me e ele me reconheceu. Cravou em mim um olhar desesperado, Mas onde ele está?! Fiz apenas um aceno ou cheguei a dizer-lhe que esperasse um pouco enquanto ia perguntar ao granjeiro: Mas e aquele ganso, o amigo do galo?!Para que prosseguir, de que valem os detalhes? Chegou um cozinheiro lá de fora, veio ajudar na festa, começou a contar o granjeiro gaguejando de emoção. Eu tinha saído, fui aqui na casa da minha irmã, não demorei muito mas esse tal de cozinheiro ficou apavorado com medo de atrasar o jantar e nem me esperou, escolheu o que quis e na escolha, acabou levando o coitado, cruzes!... Agora esse daí ficou sozinho e procurando o outro feito tonto, só falta falar esse galo, não come nem bebe, só fica andando nessa agonia! Mesmo quando canta de manhãzinha me representa que está rouco de tanto chorar.Foi o banquete de Platão, pensei meio nauseada com o miserável trocadilho. Deixei de ir à granja, era insuportável ver aquele galo definhando na busca obstinada, a crista murcha, o olhar esvaziado. E o bico, aquele bico tão tagarela agora pálido, cerrado. Mais alguns dias e foi encontrado morto ao lado do tanque onde o companheiro costumava se banhar. No livro do poeta Maiakóvski (matou-se com um tiro) há um verso que serve de epitáfio para o galo branco: Comigo viu-se doida a anatomia / sou todo um coração!
Gente enquanto eu não faço nenhum texto meu, vou publicar alguns textos maravilhosos de alguns autores fantásticos!! Aproveitem, pois são brilhantes!!


O Empréstimo
Machado de Assis
Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo, que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu. Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. Como deveis saber, há em todas as coisas um sentido filosófico. Carlyle descobriu o dos coletes, ou, mais propriamente, o do vestuário; e ninguém ignora que os números, muito antes da loteria do Ipiranga, formavam o sistema de Pitágoras. Pela minha parte creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano.
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira? Vede este rapaz: entra no mundo com uma grande ambição, uma pasta de ministro, um Banco, uma coroa de visconde, um báculo pastoral. Aos cinqüenta anos, vamos achá-lo simples apontador de alfândega, ou sacristão da roça. Tudo isso que se passou em trinta anos, pode algum Balzac metê-lo em trezentas páginas; por que não há de a vida, que foi a mestra de Balzac, apertá-lo em trinta ou sessenta minutos?
Tinham batido quatro horas no cartório do tabelião Vaz Nunes, à rua do Rosário. Os escreventes deram ainda as últimas penadas: depois limparam as penas de ganso na ponta de seda preta que pendia da gaveta ao lado; fecharam as gavetas, concertaram os papéis, arrumaram os livros, lavaram as mãos; alguns que mudavam de paletó à entrada, despiram o do trabalho e enfiaram o da rua; todos saíram. Vaz Nunes ficou só.
Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados. Usava óculos, como todos os tabeliães de teatro; mas, não sendo míope, olhava por cima deles, quando queria ver, e através deles, se pretendia não ser visto. Finório como ele só, diziam os escreventes. Em todo o caso, circunspecto. Tinha cinqüenta anos, era viúvo, sem filhos, e, para falar como alguns outros serventuários, roía muito caladinho os seus duzentos contos de réis.
- Quem é? perguntou ele de repente olhando para a porta da rua.
Estava à porta, parado na soleira, um homem que ele não conheceu logo, e mal pôde reconhecer daí a pouco. Vaz Nunes pediu-lhe o favor de entrar; ele obedeceu, cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão, e sentou-se na cadeira ao pé da mesa. Não trazia o acanho natural a um pedinte; ao contrário, parecia que não vinha ali senão para dar ao tabelião alguma coisa preciosíssima e rara. E, não obstante, Vaz Nunes estremeceu e esperou.
- Não se lembra de mim?
- Não me lembro...
- Estivemos juntos uma noite, há alguns meses, na Tijuca... Não se lembra? Em casa do Teodorico, aquela grande ceia de Natal; por sinal que lhe fiz uma saúde... Veja se se lembra do Custódio.
- Ah!
Custódio endireitou o busto, que até então inclinara um pouco. Era um homem de quarenta anos. Vestia pobremente, mas escovado, apertado, correto. Usava unhas longas, curadas com esmero, e tinha as mãos muito bem talhadas, macias, ao contrário da pele do rosto, que era agreste. Notícias mínimas, e aliás necessárias ao complemento de um certo ar duplo que distinguia este homem, um ar de pedinte e general. Na rua, andando, sem almoço e sem vintém, parecia levar após si um exército. A causa não era outra mais do que o contraste entre a natureza e a situação, entre a alma e a vida. Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver. Il faut bien que je vive, dizia um pretendente ao ministro Talleyrand. Je n'en vois pas la nécessité, redargüiu friamente o ministro. Ninguém dava essa resposta ao Custódio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida.
Digo que principalmente vivia delas, porque o Custódio não recusava meter-se em alguns negócios, com a condição de os escolher, e escolhia sempre os que não prestavam para nada. Tinha o faro das catástrofes. Entre vinte empresas, adivinhava logo a insensata, e metia ombros a ela, com resolução. O caiporismo, que o perseguia, fazia com que as dezenove prosperassem, e a vigésima lhe estourasse nas mãos. Não importa; aparelhava-se para outra.
Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro. E os planos, os desenhos da fábrica, os relatórios de Birmingham, os mapas de importação, as respostas dos alfaiates, dos donos de armarinho, etc., todos os documentos de um longo inquérito passavam diante dos olhos de Custódio, estrelados de algarismos, que ele não entendia, e que por isso mesmo lhe pareciam dogmáticos. Vinte e quatro horas; não pedia mais de vinte e quatro horas para trazer os cinco contos. E saiu dali, cortejado, animado pelo anunciante, que, ainda à porta, o afogou numa torrente de saldos. Mas os cinco contos, menos dóceis ou menos vagabundos que os cinco mil-réis, sacudiam incredulamente a cabeça, e deixavam-se estar nas arcas, tolhidos de medo e de sono. Nada. Oito ou dez amigos, a quem falou, disseram-lhe que nem dispunham agora da soma pedida, nem acreditavam na fábrica. Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.
- Venho pedir-lhe uma escritura...
Vaz Nunes, armado para outro começo, não respondeu: espiou para cima dos óculos e esperou.
- Uma escritura de gratidão, explicou o Custódio; venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo...
- Se estiver nas minhas mãos...
- O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do resultado. A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, - ou a três, com juro módico...
- Cinco contos?
- Sim, senhor.
- Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?
- Ora, se o senhor quisesse...
- Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena, acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.
A alma do Custódio caiu de bruços. Subira pela escada de Jacó até o céu; mas em vez de descer como os anjos no sonho bíblico, rolou abaixo e caiu de bruços. Era a última esperança; e justamente por ter sido inesperada, é que ele supôs que fosse certa, pois, como todos os corações que se entregam ao regime do eventual, o do Custódio era supersticioso. O pobre-diabo sentiu enterrarem-se-lhe no corpo os milhões de agulhas que a fábrica teria de produzir no primeiro semestre. Calado, com os olhos no chão, esperou que o tabelião continuasse, que se compadecesse, que lhe desse alguma aberta; mas o tabelião, que lia isso mesmo na alma do Custódio, estava também calado, girando entre os dedos a boceta de rapé, respirando grosso, com um certo chiado nasal e implicante. Custódio ensaiou todas as atitudes; ora pedinte, ora general. O tabelião não se mexia. Custódio ergueu-se.
- Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo...
- Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida; mas...
Estendeu a mão ao Custódio, que com a esquerda pegara maquinalmente no chapéu. O olhar empanado do Custódio exprimia a absorção da alma dele, apenas convalescida da queda que lhe tirara as últimas energias. Nenhuma escada misteriosa, nenhum céu; tudo voara a um piparote do tabelião. Adeus, agulhas! A realidade veio tomá-lo outra vez com as suas unhas de bronze. Tinha de voltar ao precário, ao adventício, às velhas contas, com os grandes zeros arregalados e os cifrões retorcidos à laia de orelhas, que continuariam a fitá-lo e a ouvi-lo, a ouvi-lo e a fitá-lo, alongando para ele os algarismos implacáveis de fome. Que queda! e que abismo! Desenganado, olhou para o tabelião com um gesto de despedida; mas, uma idéia súbita clareou-lhe a noite do cérebro. Se a quantia fosse menor, Vaz Nunes poderia servi-lo, e com prazer; por que não seria uma quantia menor? Já agora abria mão da empresa; mas não podia fazer o mesmo a uns aluguéis atrasados, a dois ou três credores, etc., e uma soma razoável, quinhentos mil-réis, por exemplo, uma vez que o tabelião tinha a boa vontade de emprestar-lhos, vinham a ponto. A alma do Custódio empertigou-se; vivia do presente, nada queria saber do passado, nem saudades, nem temores, nem remorsos. O presente era tudo. O presente eram os quinhentos mil-réis, que ele ia ver surdir da algibeira do tabelião, como um alvará de liberdade.
- Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?
- Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.
- Quinhentos mil-réis?
- Não; não posso.
- Nem quinhentos mil-réis?
- Nem isso, replicou firme o tabelião. De que se admira? Não lhe nego que tenho algumas propriedades; mas, meu amigo, não ando com elas no bolso; e tenho certas obrigações particulares... Diga-me, não está empregado?
- Não, senhor.
- Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da justiça, tenho relações com ele, e...
Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. Se foi um movimento natural, ou uma diversão astuciosa para não conversar do emprego, é o que totalmente ignoro; nem parece que seja essencial ao caso. O essencial é que ele teimou na súplica. Não podia dar quinhentos mil-réis? Aceitava duzentos; bastavam-lhe duzentos, não para a empresa, pois adotava o conselho dos amigos: ia recusá-la. Os duzentos mil-réis, visto que o tabelião estava disposto a ajudá-lo, eram para uma necessidade urgente, - "tapar um buraco". E então relatou tudo, respondeu à franqueza com franqueza: era a regra da sua vida. Confessou que, ao tratar da grande empresa, tivera em mente acudir também a um credor pertinaz, um diabo, um judeu, que rigorosamente ainda lhe devia, mas tivera a aleivosia de trocar de posição. Eram duzentos e poucos mil-réis; e dez, parece; mas aceitava duzentos...
- Realmente, custa-me repetir-lhe o que disse; mas, enfim, nem os duzentos mil-réis posso dar. Cem mesmo, se o senhor os pedisse, estão acima das minhas forças nesta ocasião. Noutra pode ser, e não tenho dúvida, mas agora...
- Não imagina os apuros em que estou!
- Nem cem, repito. Tenho tido muitas dificuldades nestes últimos tempos. Sociedades, subscrições, maçonaria... Custa-lhe crer, não é? Naturalmente: um proprietário. Mas, meu amigo, é muito bom ter casas: o senhor é que não conta os estragos, os consertos, as penas-d'água, as décimas, o seguro, os calotes, etc. São os buracos do pote, por onde vai a maior parte da água...
- Tivesse eu um pote! suspirou Custódio.
- Não digo que não. O que digo é que não basta ter casas para não ter cuidados, despesas, e até credores... Creia o senhor que também eu tenho credores.
- Nem cem mil-réis!
- Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é verdade. Nem cem mil-réis. Que horas são?
Levantou-se, e veio ao meio da sala. Custódio veio também, arrastado, desesperado. Não podia acabar de crer que o tabelião não tivesse ao menos cem mil-réis. Quem é que não tem cem mil-réis consigo? Cogitou uma cena patética, mas o cartório abria para a rua; seria ridículo. Olhou para fora. Na loja fronteira, um sujeito apreçava uma sobrecasaca, à porta, porque entardecia depressa, e o interior era escuro. O caixeiro segurava a obra no ar; o freguês examinava o pano com a vista e com os dedos, depois as costuras, o forro... Este incidente rasgou-lhe um horizonte novo, embora modesto; era tempo de aposentar o paletó que trazia. Mas nem cinqüenta mil-réis podia dar-lhe o tabelião. Custódio sorriu; - não de desdém, não de raiva, mas de amargura e dúvida; era impossível que ele não tivesse cinqüenta mil-réis. Vinte, ao menos? Nem vinte. Nem vinte! Não; falso tudo, tudo mentira.
Custódio tirou o lenço, alisou o chapéu devagarinho; depois guardou o lenço, concertou a gravata, com um ar misto de esperança e despeito. Viera cerceando as asas à ambição, pluma a pluma; restava ainda uma penugem curta e fina, que lhe metia umas veleidades de voar. Mas o outro, nada. Vaz Nunes cotejava o relógio da parede com o do bolso, chegava este ao ouvido, limpava o mostrador, calado, transpirando por todos os poros impaciência e fastio. Estavam a pingar as cinco, enfim, e o tabelião, que as esperava, desengatilhou a despedida. Era tarde; morava longe. Dizendo isto, despiu o paletó de alpaca, e vestiu o de casimira, mudou de um para outro a boceta de rapé, o lenço, a carteira... Oh! a carteira! Custódio viu esse utensílio problemático, apalpou-o com os olhos; invejou a alpaca, invejou a casimira, quis ser algibeira, quis ser o couro, a matéria mesma do precioso receptáculo. Lá vai ela; mergulhou de todo no bolso do peito esquerdo; o tabelião abotoou-se. Nem vinte mil-réis! Era impossível que não levasse ali vinte mil-réis, pensava ele; não diria duzentos, mas vinte, dez que fossem...
- Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.
- Quer ver?
E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil-réis.
- Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?
Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo. Estendeu a mão ao outro, agradeceu-lhe o obséquio, despediu-se até breve, - um até breve cheio de afirmações implícitas. Depois saiu; o pedinte esvaiu-se à porta do cartório; o general é que foi por ali abaixo, pisando rijo, encarando fraternalmente os ingleses do comércio que subiam a rua para se transportarem aos arrabaldes. Nunca o céu lhe pareceu tão azul, nem a tarde tão límpida; todos os homens traziam na retina a alma da hospitalidade. Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.