sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Diário

Rafael Cerqueira


Lembro-me como se fosse hoje, apesar da minha pouca memória. Há muito tempo atrás, no ano de 1958, eu tinha apenas dez anos, três homens invadiram minha casa numa noite fria, papai tentando nos proteger, acabou morrendo ao lutar com aqueles monstros. Quase não deu pra chorar a trágica perda de meu pai, pouco tempo depois mamãe e eu descobrimos que aquela morte havia sido encomendada por um policial, que ficou sabendo que o assassinato que ele tinha cometido tinha sido presenciado por um infeliz que decidirá contar tudo o que havia ocorrido aos investigadores do caso. Infelizmente aquele infeliz que havia perdido a vida por ter tido o azar de estar no lugar errado na hora errada era o meu pai.

Abalada e principalmente com medo do que poderia nos acontecer, minha mãe decidiu começar uma nova vida em um novo lugar. Mudamos de cidade, enfim mudamos de vida. No início foi muito difícil, em plena década de 50, uma mulher como minha mãe, educada exclusivamente para casar, ter filhos e cuidar de seus afazeres domésticos, não imaginava o que fazer para sobreviver sem um homem dentro do lar. Tivemos sorte, pois há aproximadamente cinco anos atrás, meus pais começaram a guardar um pouco do dinheiro mensal da família para caso houvesse alguma emergência. Com isso nós duas conseguimos nos sustentar nos primeiros sete meses da “nova vida”. Depois que ele havia acabado toda a tranqüilidade dos últimos meses tinha ido embora. Mamãe então, resolvendo aproveitar o que ela melhor sabia fazer, segundo suas antigas amigas, deu início a uma pequena confecção que em cima de muitas dificuldades conseguiu dar algum lucro para podermos dar continuidade a uma vida normal.

Assim levamos a vida por um bom tempo. Quando eu estava com 20 anos, a notícia que eu menos queria ouvir soou em meus ouvidos como uma bomba fatal. Minha mãe, minha única companheira, a pessoa que sempre esteve do meu lado nos bons e maus momentos, faleceu no hospital devido a um câncer que nem ela e nem eu sabíamos que havia surgido e se desenvolvido em seu útero, o mesmo que me colocará no mundo. No momento, ainda muito anestesiada pela dor, eu não conseguia pensar como seria a minha vida dali em diante. O que eu iria fazer para dar continuidade a minha vida comum que eu tanta reclamava, mas que só me fez falta quando eu percebi que poderia perdê-la. Depois de ter enterrado, solitária, o corpo da minha mãe, voltei para casa e ao chegar em minha rua comecei a notar que a minha vida mudaria daquele momento em diante.

Uma mulher como eu no ano de 1968, em plena Ditadura Militar, sozinha, sem saber o que fazer e ainda negra, coisa que para muita gente era um fardo a ser carregado e para outros era uma desgraça a ser banida. Nunca me arrependi tanto de uma coisa como de não ter aprendido a costurar com minha mãe. Agora se tivesse aprendido, eu poderia dar continuidade ao trabalho que ela começou e não precisaria ficar tão preocupada com o meu futuro. Além disso, eu não me acostumara com a idéia de ser uma pessoa sozinha no mundo. Tanto meu pai quanto minha mãe nasceram em famílias pequenas e todos morreram antes que o meu pai.

Devido a minha situação, recebi ajuda de alguns vizinhos que tinham alguma relação com minha mãe. Minha situação não ficou tão ruim devido a essas pessoas, mas à medida que os dias iam passando eu percebia que aquela situação ia ficando cada vez mais insustentável, pois aquelas pessoas eram tão pobres quanto eu. Penso que estava me tornando um fardo para eles. E, além disso, a minha ambição não permitia que eu ficasse naquela cidadezinha para sempre. A normalidade da minha vida, que era uma boa coisa até pouco tempo atrás começava a me incomodar desde a morte da minha mãe.

Um dia sem avisar nada para ninguém e sem agradecer quem tia me ajudado, resolvi ir embora daquele lugar. Consegui um bom dinheiro vendendo a minha casa e os poucos objetos de valor que tinham nela, inclusive a máquina de costura que um dia havia me sustentado. Fiquei apenas com minhas roupas, algumas fotos dos meus pais e um par de brincos que minha mãe tanto tinha trabalhado para comprar quando eu fiz 15 anos. Só decidi para onde iria alguns minutos antes de entrar no ônibus, voltaria para a cidade que eu sai as pressas a nove anos atrás. Mal sabia eu, mas minha vida iria mudar completamente a partir daquele momento, e infelizmente para pior.

Ao chegar na minha nova velha cidade, tudo havia mudado. Não era mais aquela menina do interior que vivia de acordo com as decisões de sua mãe. Agora era uma jovem mulher que teria que batalhar dia a dia para conseguir alguma coisa numa grande cidade, cheia de gente e de perigos. Aluguei um quarto numa antiga pensão do centro da cidade. O trabalho foi mais difícil conseguir, demorei semanas e semanas para achar uma vaga de garçonete numa lanchonete do subúrbio, que ficava bem longe da minha nova casa. Segundo a dona da pensão que eu morava, uma moça como eu devia agradecer a Deus por ter conseguido um lugar para morar e um canto para trabalhar em plena época de reações ao regime militar. Sabia, porém, que na verdade todo o espanto daquela mulher era em relação a uma jovem negra e pobre como eu ter conseguido se estabilizar tão rapidamente em uma cidade tão grande.

A estabilidade que eu tanto queria, já havia conseguido. Mas a minha satisfação não estava totalmente completa. Ser garçonete com certeza não era o que eu queria para a minha vida. Muito pelo contrário, sonhava em ter o ensino superior e ser alguém na vida. Busquei tanto por esse sonho que acabei conseguindo aos 23. Consegui uma bolsa em uma faculdade particular para fazer administração. Sofri muito preconceito, tanto dos meus colegas quanto dos próprios professores da faculdade. Na minha sala, de trinta e cinco alunos, era uma das onze mulheres, e dessas onze mulheres era a única negra. Quatro anos depois, já com 27 anos consegui enfim me formar. O desejo dos meus pais havia se tornado realidade, o meu desejo estava se concretizando.

Um ano antes de me formar, havia deixado de trabalhar na lanchonete. Agora fazia uma espécie de estágio que com a minha especialização com certeza se tornaria um emprego fixo. Isso era o que eu queria que acontecesse, mas até que isso ocorresse foi preciso muita paciência e determinação. Um dia, já sem tanta animação eu fui informada que seria uma das administradoras chefe de uma contadora instalada recentemente na cidade. Parecia irreal, aquilo que eu mais queria estava finalmente acontecendo. Novas idéias e planos começaram a surgir em minha cabeça.

A palavra estabilidade continuava sendo o meu dilema e parecia que agora eu estava ficando cada vez mais confiante de minha capacidade. Todo mês quando eu recebia meu salário, guardava uma parte para algum contratempo. E exatamente quatro anos depois, quando o dono da contadora resolveu vende-la, eu resolvi comprá-la. Agora sendo a dona daquele lugar, muitos colegas de trabalho meus ficaram receosos de trabalha para uma negra, mas isso eu soube controlar e tudo funcionou como eu sempre desejei.

Quando tinha 31 anos, a independência que eu tanto queria já não era mais suficiente. A vontade de ter uma família se tornava cada vez mais crescente. Foi nesse período que conheci a minha eterna parceira. Minha opção sexual já estava decidida. Já havia namorado homens, mas descobri que a pessoa que eu realmente amava era uma mulher. Tentei esconder isso de todas as maneiras, mas cheguei a um ponto onde não dava mais para segurar. Falei para quem quisesse ouvir. E para a minha grata surpresa essa mulher também gostava de mim.

Passamos a conviver juntas numa relação harmoniosa e respeitosa. Eram evidentes as chacotas das pessoas que sabiam da nossa relação, mas não a respeitava. O desejo de ter um filho surgiu nas duas como um só desejo. Porém, o fator biológico não permitia e o fator humano também, pois era quase impossível um casal gay adotar legalmente uma criança naquela época. Levávamos a vida numa boa, mas carregando a culpa de não podermos criar um filho juntas.

Vivemos felizes durante quinze anos seguidos. Muitas brigas aconteceram, como em todo casal. Mas o nosso amor foi mais forte. E até esse trágico dia tudo estava indo bem para mim. Numa tarde do ano de 1994, estava com 46 anos, quando eu e minha companheira viajávamos de carro debaixo de uma forte chuva. Tudo parecia bem até quando ela, que estava dirigindo o veículo, perdeu o controle do carro ao tentar desviar de um outro automóvel que estava vindo na contramão. Fomos direto para uma ribanceira onde o carro capotou várias e várias vezes.

Acordei em cima de uma cama de hospital. Chamei alguém para me ajudar e para a minha surpresa já haviam passado dois meses que o acidente havia ocorrido. Desgraça maior foi saber que o que eu mais temia tinha acontecido. Minha parceira tinha morrido e eu nem mesmo pude enterrá-la. Tive alta do hospital depois de alguns dias e a primeira coisa que eu fiz foi visitar o túmulo dela, o mínimo que eu podia fazer era levar flores para o túmulo de quem eu não vi ser enterrada.

Depois de muito chorar, uma grande preocupação tomou conta de mim. Quem havia tomado conta da minha financeira durante todo esse tempo. Corri para lá, ainda muito abalada com aquela situação, tive um certo alívio ao ver que ela continuava funcionando da mesma maneira que eu tinha deixado a três meses atrás. Uma grande amiga minha e funcionária de confiança havia tomado conta de tudo durante o tempo que estive hospitalizada. Pelo menos uma notícia boa em meio a tanta tragédia, foi o que eu pensei.


Minha vida tomou um novo rumo a partir daquele momento. Minha vontade de ser mãe voltará a toda força. Mas já com 46 anos, engravidar seria uma difícil tarefa. Resolvi retomar o pensamento que eu tive de adotar uma criança. Tinha o pensamento de que seria mais fácil para uma mulher solteira do que para um casal gay adotar uma criança. Mas hoje penso se esse pensamento realmente era correto. Fiquei um ano e dez meses envolvida no processo de adoção de uma garota de 12 anos que havia tido uma história parecida com a minha. Seu pai havia sido assassinado e sua mãe morrera poucos meses depois da tragédia. Finalmente depois desse tempo, já com um ano a mais de vida consegui a tão esperada guarda daquela criança.

Foi difícil tanto para mim quanto para ela adaptarmos-nos aquela nova vida. No começo foi um tanto complicado, a timidez daquela garota impedia uma aproximação maior. Mas com o tempo ela passou a confiar mais em minha e na proteção que eu tinha para oferecer a ela. Foi aí que a vontade de ter alguém para continuar a luta que eu havia começado de ter uma vida melhor surgiu. Agora eu já tinha uma herdeira para fazer com que todo o trabalho que eu tinha realizado para conseguir um lugar no mundo não fosse desperdiçado. No fundo esse meu pensamento tinha um princípio egoísta, mas, além disso, eu queria viver em uma família, e acho que isso era o que ela queria também.

Já aos 52 anos, um novo milênio estava começando. O ano de 2000 foi cheio de surpresas para mim. Minha filha já estava com 17 anos e a nossa vida como mãe e filha já havia se tornado uma realidade contínua. Brigas, reconciliações, ofensas e conselhos eram trocados como se nós fossemos mãe e filha de verdade, aliás, nós éramos exatamente isso. Certa vez tivemos uma grande briga, ela chegou até a ficar um tempo fora de casa e eu pensei se tinha feito a coisa certa em ter adotado aquela garota. Hoje, vejo que foi uma das mais certas decisões da minha vida.
Pensava que mais nada poderia me abalar. Tanto minha vida econômica quanto minha vida social e familiar andavam em alta. Como nunca fui de cuidar muito da saúde, descobri tardiamente um tumor maligno, já bem desenvolvido no meu seio. A lembrança da minha mãe e de sua morte devido a um câncer veio em minha mente no mesmo momento. Será que eu acabaria como ela? Perguntava-me a todo instante. Viverei depois desse momento todos os anos da minha vida como se fosse o último. Não sei quantos serão, mas sei que serão únicos.

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